Tratamento precoce para COVID-19: opinião baseada em evidência

Atualmente foi formada no Senado Federal uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investiga a atuação do Governo Federal na pandemia de COVID-19. Uma discussão que toma conta da comissão nesse início é a eficácia dos tratamentos precoces, especialmente o uso da hidroxycloroquina e ivermectina. Isso porque desde o início da pandemia o Presidente da República, Jair Bolsonaro, defende e propagandeia o uso da hidroxycloroquina e da ivermectina para os brasileiros, mesmo que não se tenha evidência científica, até o momento, do benefício dessas medicações no tratamento ou até mesmo na atenuação de casos graves da COVID-19.

Um recente trabalho intitulado “Prophylaxis against covid-19: living systematic review and network meta-analysis”, publicado em de 7 de maio no periódico BMJ (British Medical Association), uma das mais importantes da área da medicina (fator de impacto de 30,223 pontos, Qualis A1), por meio de uma revisão sistemática com meta-análise de rede, concluiu que a profilaxia com hidroxicloroquina tem discreto efeito ou nenhum efeito sobre a admissão hospitalar e mortalidade, e que provavelmente aumenta os efeitos adversos e não reduz o risco de infecção por SARS-CoV-2.

Sobre o uso da ivermectina, os autores concluíram que os estudos realizados foram provenientes de pequenas amostras, o que aumenta o risco de parcialidade e imprecisão desses estudos, e que com as pesquisas que se tem até hoje é incerto se  a ivermectina combinada com Iota carregena e a ivermectina sozinha reduzem o risco de infecção por SARS-COV-2 (vírus da COVID-19).

O trabalho teve como critério de elegibilidade na seleção dos artigos, ensaios clínicos randomizados em pacientes sob risco de COVID-19 que compararam diferentes medicamentos ou doses terapêuticas de vitaminas ou anticorpos para profilaxia, uns contra os outros, ou que compararam com um grupo placebo (uso de medicação sem efeito). Também foram incluídos estudos de pessoas pré ou pós expostas ao COVID-19, seja de pessoas com baixo risco de infecção, ou com alto risco (pessoas que tiveram membros da família com COVID-19, contato de caso-índice e trabalhadores da área da saúde).

Como resultado, após revisão de 692 resumos de ensaios clínicos, seguindo a metodologia PRISMA de revisão sistemática e preconizando a classificação de risco de BIAS da Cochrane para ensaios clínicos, foram selecionados para a meta-análise 11 ensaios clínicos randomizados, 5 avaliaram o efeito da hidroxycloroquina, 2 avaliaram a ivermectina e 1 trabalho a ivermectina combinada com a medicação iota carragena. 

A tabela abaixo mostra a comparação do risco das drogas testadas com o tratamento padrão, resultado da meta-análise, onde as medidas dispostas nas células referentes as medicações estimam a diferença média da medida de risco entre os grupos.

Observa-se que em relação a hidroxycloroquina, não houve diferença estatisticamente significante em nenhuma das comparações (intervalo de confiança contém o valor zero), seja na redução da incidência de casos confirmados laboratorialmente (aumento médio de 2 casos por mil – IC 95%: -18 a 28), seja na incidência de casos suspeitos ou prováveis (redução média de 15 casos por mil – IC 95%: -64 a 41), na incidência de admissão hospitalar (redução média de 1 caso por mil – IC 95%: -2 a 3) ou na taxa de mortalidade (redução média de 1 caso por mil –  IC 95%: -2 a 3). Por outro lado se observou que houve um aumento na incidência de efeitos adversos que resultaram na descontinuidade do tratamento de 19 casos por mil (IC 95%: -1 a 70).

Considerando o nível de certeza pelo tamanho amostral dos estudos combinados na meta-análise, as evidências relacionadas a hidroxycloroquina mostram uma alta ou moderada confiabilidade de não haver diferença do tratamento com essa droga quando comparada com o tratamento padrão em relação a incidência de casos confirmados ou de casos suspeitos ou prováveis, na incidência de admissão hospitalar, assim como na taxa de mortalidade, por outro lado tem uma alta ou moderada certeza de que a droga é prejudicial (harmfull) ao paciente. Pela ausência de ensaios clínicos randomizados e controlados envolvendo a ivermectina, as evidências são muito baixas em determinar um benefício da medicação na profilaxia da COVID-19. Todas as comparações da taxa de incidência do grupo padrão em relação a ivermectina combinada com iota carragena ou sozinha não foram estatisticamente significante e apresentaram intervalos de confiança alargados (imprecisão), o que indica que a amostra combinada dos estudos foi pequena.

Figura 1. Resumo dos efeitos comparados com o tratamento padrão

O artigo apresentado tem como força de evidência ter selecionado apenas ensaios clínicos randomizados e não estudos observacionais, e como limitação a conclusão da ivermectina que teve muito baixo nível de certeza e que precisa, necessariamente, de mais estudos controlados e randomizados para se ter no meio científico uma melhor evidência da eficácia dessa medicação como profilaxia contra a COVID-19.

A sociedade em geral desconhece como a ciência funciona, como as hipóteses são testadas, sobre a necessidade de uma metodologia adequada para a obtenção dos resultados, sobre que análise estatística deve ser empregada e como esses resultados devem ser interpretados. Por isso cabe ao profissional da saúde, aos conselhos em saúde, que protocolam ou prescrevem essas medicações, interpretar esses achados, e pautar a sua atuação baseado na evidência científica. 

Cabe então a responsabilização de gestores, formadores de opinião e dos políticos que pregam tratamentos precoces sem evidência científica e são contra as medidas de distanciamento social e medidas de proteção individual, pelas inúmeras mortes evitáveis no Brasil. É preciso considerar que a divulgação de tratamentos profiláticos para Covid-19, além dos efeitos adversos, traz uma sensação de segurança a quem toma essa medicação que não irão se infectar pelo vírus e se infectados serão acometidos de apenas uma “gripezinha”. Como consequência, adiam a ida ao serviço de saúde, e quando chegam ao hospital estão em estado avançado da doença sem chance de recuperação.

É preciso que pautemos nossas decisões baseadas na ciência, na evidência científica, sejam elas na área da saúde ou qualquer outra área do conhecimento.

Link do artigo:

Prophylaxis against covid-19: living systematic review and network meta-analysis | The BMJ      

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